Ensaio sobre a putativa morte

Há cerca de dez anos, não há um dia em que eu não pense sobre a minha morte. Em outras palavras, pelo menos um momento de cada dia que se passa, eu tenho de parar e dedicar minha reflexão sobre o dia em que eu irei morrer. No entanto, em todos esses instantes aos quais eu me concerni, em hipótese alguma, eu havia tido contato direto com a minha possível “Morte”. Até que, em certo dia, eu, após as três horas da manhã, ao adormecer, experimentei um sonho inusitado, terrível e bizarro. Isto, quiçá, pelo fato de eu jamais ter sonhado com a Morte, tampouco da forma como esta a mim se apresentara. Em meu sonho, as pessoas que estávamos em uma sala, quase vazia – não fossem as quatro cadeiras ali presentes – eram, minha mãe, uma tia minha, eu e, embora eu não me recorde quem eram, havia ali mais duas pessoas. Recordo-me de que participávamos de uma espécie de brincadeira, até então por mim desconhecida. Reiterando, havia somente quatro cadeiras brancas – de plástico – naquela sala. Suas posições se davam da seguinte forma: uma cadeira colocada no centro da sala e; atrás dessa cadeira, encontravam-se as outras três, uma ao lado da outra. Eu me encontrava na primeira, da esquerda para a direita – considerando a posição que me faz ficar de frente à cadeira central -, minha mãe estava sentada logo ao meu lado e, nos dois últimos assentos, encontravam-se as pessoas a cuja feição minha memória não consegue se recordar.

Em se tratando da brincadeira, esta se desenrolava da forma que eu irei descrever a seguir. Bem, a pessoa que sentasse sobre a cadeira, posicionada ao centro da sala, tinha de se dirigir a uma das demais pessoas que estivessem sentadas sobre as cadeiras que se encontravam atrás e interpretar para uma delas algum tipo de personagem. Lembro que era a vez de minha tia (Ana Célia), esta escolhera a minha pessoa. Tia Célia – como é de costume eu chamar -, ao estar no local de interpretação, com uma medonha voz grave, resolvera interpretar a Morte. Assim, já em seu personagem, esta me dissera: “Eu sou a Morte! Estou aqui para lhe dizer que, quando você for ao banco, eu irei levar você comigo.”. Eu, assustado, claro, diante daquela apavorante cena, possuía, como única opção, despertar-me daquele sono, que me proporcionara, em tenebroso sonho, ter contato direto com a Morte.

O pior de tudo – e para o meu espanto – foi que, durante a manhã seguinte, a primeira atividade que eu havia de fazer, era justamente ir ao Banco do Brasil, consultar o meu extrato bancário. Eu confesso que, ao chegar lá e adentrar, fiquei meio que apavorado e assustado, temendo a concretização do sonho horripilante que eu tivera. No entanto, ao menos nesse dia, nada me acontecera. E, para o meu aconchego, uma professora minha, de Literatura e Filosofia, Angela, consolara-me, alegando que poderia se tratar de outro tipo de morte, como, por exemplo, eu poderia estar renunciando a alguma paixão, quem sabe. Aliviado, resolvi me apegar à explicação dela e, não mais me inquietar com esse assombroso e abissal sonho. Entretanto, embora eu tenha me apegado e me consolado com essa explicação, sabia muito bem que, a morta à qual tivera contato comigo, tratava-se justamente daquela que finda o nosso ciclo enquanto ser vivente, o que fizera com que minha inquietação, apesar de abrandada, continuasse.

Creio que você deva estar se questionando sobre o porquê de eu ficar aqui contando e falando sobre mero sonho, uma vez que, o que o título indica, é sobre o meu posicionamento em relação à Morte. Mas a minha decisão íntima sobre esta se originara justamente a partir desse singelo sonho. Destarte, por meio da antipredicatividade que constitui a minha própria existência, procurando me desgarrar de qualquer espécie de juízo que possa vir me corromper, arrimando-me principalmente em dois conceitos, a saber, ao conceito de substantivo e ao conceito de verbo – focando-me sobretudo no verbo “morrer” -, irei dissertar aqui o que eu penso, em uma verificação prévia, sobre a putativa e hipotética Morte.

Diante disso, de acordo com os meus obsoletos estudos gramaticais – e creio que tais conceitos não tenham mudado -, “Substantivo” se refere a tudo aquilo que existe (ser) e, para a existência de qualquer ser, é necessário atribuir a este um nome. Substantivo, portanto, refere-se à “classe gramatical de palavras variáveis”, cujas mesmas são utilizadas para que o seres sejam denominados. Os substantivos podem ser classificados, dentre outros, enquanto concretos ou abstratos. A primeira classificação diz respeito a coisas reais – como, “homem”, “livro”, “curupira” e – por que não? – “morte”. Assim, os substantivos podem nomear estados (emoções), lugares, qualidades, objetos, ações, fenômenos, bem como pessoas. Em se tratando de “Verbo”, este, grosso modo, está relacionado à classe de palavras e pode variar em voz, número, modo, tempo e pessoa. Dentre algumas metodologias, o verbo também pode implicar um estado, uma ação, um fenômeno, um desejo e uma ocorrência.

Como eu havia dito anteriormente, em se tratando de verbo, eu irei focar minha atenção sobretudo ao verbo “Morrer”. Com isso, atendo-me particularmente a este verbo, sei que o mesmo traz em si, através de sua ação, a completude de sua ideia, isto é, ele não precisa de termo algum para completar o seu sentido. É o que poderei chamar, aqui, de verbo em sua plenitude. Eu, por exemplo, ao dizer que meu pai morreu – e não é uma situação hipotética, uma vez que meu pai, de fato, morrera -, é o suficiente para que se compreendam completamente a ação. Perguntarem-me o porquê, como, onde e quando o meu pai morreu, já são outras circunstâncias, que não são, aqui, complementos do verbo, vale ressaltar. Em termos gramaticais, o verbo “Morrer” se classifica, portanto, enquanto verbo intransitivo, que você deve estar agora se recordando quando em seu tempo de escola.

Doravante essas minhas análises, irei prosseguir o meu entendimento sobre a suposta Morte. Raciocinando, se um substantivo serve para se referir – classificar – a tudo aquilo que existe e, estando a Morte – uma vez que é contraditório dizer sobre sua existência -, de fora dessa classificação, então, nada posso dizer sobre ela (Morte). Se algo, de acordo com o que eu compreendi, para existir, tem de estar sujeito a pelo menos uma flexão verbal, enquanto que a Morte não se sujeita a nada, tampouco se sujeita a flexão verbal alguma, logo, a Morte não existe. Sendo assim, substancializamos e substantivamos algo que não existe, por quê? Qual fora o motivo de minha tia, durante a brincadeira, dirigir-se a mim, personificando a Morte? Por que, então, tememos algo que não existe? Será que é à Morte mesmo que nós tememos?

Prefiro responder a essas indagações, começando pela última questão. Depois do sonho que eu tivera com a putativa Morte, confesso que fiquei com muito medo. Eu, temendo e assustado, olhava para todos os lados do recinto bancário, querendo saber se a Morte estava de fato à minha espera. Mas ela não veio, e nem viria, acredito. Por quê? Pelo fato de, conforme a conclusão que eu tive, a Morte, na verdade, não existe. Quando algum ser, seja um homem, uma mulher, um animal, uma planta, enfim, quando qualquer um desses seres é ceifado, antes disto, ele passa por um processo que se encontra justamente na ação do verbo “Morrer”, a saber, este em sua forma verbal, denominada gerúndio. Doravante essa ação, o citado verbo chega à plenitude de sua ideia, podendo, portanto, dizer que determinado ser “morreu”, para ser mais que perfeito, que determinado ser “morrera”. Mas essa reflexão, creio, só pode ser feita pelo ser humano, cuja razão é o que pode permitir tal ato.

Entrementes, antes disso, convém explicar que, alguém, por exemplo, ao ser submetido à ação contínua dessa conjugação verbal, ainda se encontra em vida. É nesse decorrer que a pessoa “sofre”, “padece”, em suma, é aqui, ainda gozando de sua consciência, que ela percebe que a sua vida – a sua existência – está chegando ao fim. É aqui, também, que muitas delas, que dizem haver um paraíso após morrerem, clamam ao seu deus, pedindo para que não as leve. É neste momento, diante desse pedido, pois, que elas afirmam, apavoradas, sua dúvida em relação à crença em seu determinado deus. E, quando não horripiladas, muito ao contrário, quando tranquilas, dirigem-se, geralmente se apropriando do termo condicional “se”, isto é, alegam que, se o seu deus de fato existir, elas estarão indo para a Glória, ao paraíso, enfim. No entanto, elas morrem. Seu corpo, ainda em perfeição, pode, sim, ser substantivado. Eu posso dizer, diante de algum morto – eu disse morto – que, à minha frente, existe um cadáver. Eu o vejo, o mesmo é palpável, enfim, posso de fato conceber e dar existência ao substantivo. Portanto, respondendo também à segunda indagação, o que nós tememos, eu acredito, é justamente esta ação do verbo “Morrer”, pois é durante a mesma, que temos plena consciência e lucidez de que a nossa vida está de fato se findando.

Em se tratando de minha tia, o fato de – senão todas – a maioria das pessoas personificar a Morte está associado à postura eufêmica de elas se comportarem após a plenitude de verbo “Morrer” atingir determinado ente querido. Em outras palavras, diante do sofrimento causado por essa ação verbal àqueles que se encontravam em existência, os mesmos, ao se despedirem de seus queridos mortos, em busca de minimizar tal sofrimento, inventaram o ser mitológico de codinome “Morte”.

Por que eles fizeram isso? Eu acredito que, doravante essa invenção, eles puderam se refrigerar, alegando a possibilidade de – uma vez que a Morte, personificada, viera buscar o falecido – haver vida após esta completude do verbo “Morrer”. Em virtude disso, ou seja, dessa alegação humana em haver vida após o ato de morrer algum ente querido, com o intuito de confortar os que ficaram em vida, eu penso que foi doravante isso, também, que o Homem conseguiu conceber a invenção de algo que pudesse tê-lo criado, ou seja, a invenção de Deus.

Um exemplo disso, encontra-se na experiência que eu tive aos seis anos de idade. Nessa época, havia uma senhora, vizinha nossa que, há muito, tentava ter um filho. Só que, infelizmente, a sua gravidez não vingava ou, quando ela chegava ao seu trabalho de parto, a criança nascia morta – de acordo com minhas lembranças, isso aconteceu umas cinco vezes. Até que, certa vez, essa vizinha conseguira ter uma filha. Esta ao completar um ano de idade – e eu com seis, reiterando -, eu olhei para meu irmão mais velho e perguntei, em forma de afirmação, se ela estaria livre da Morte, pois, para mim, em minha intuição, se a criança passasse de um ano de vida, não mais morreria, ao menos quando criança. Ao me deparar com a resposta de meu irmão, dizendo que não, que qualquer criança, em qualquer idade, poderia morrer, eu me desesperei. Relacionei aquilo também a mim, uma vez que eu também era criança. Foi neste momento, portanto, que eu também resolvi aderir à ideia de “Deus”. Foi neste momento também que eu personifiquei a “Morte”. Passei eu, desde então, semelhante aos demais, a querer adorar aquele e a temer esta, coisa que eu nunca consegui aderir com sinceridade, pois eu sempre tivera dúvidas sobre ambos. Todavia, o medo em questioná-los era mais forte, eu estaria indo de encontro sobretudo às tradições de minha família, coisa inadmissível à época, o que me servira de tortura e me martirizara durante muito tempo. Porém, não aprofundarei aqui essa questão sobre a invenção de Deus, uma vez que o objeto é falar sobre a Morte.

Enquanto a esta, por meio de minha humilde intuição, eu, ao analisar sobre a sua possível existência, chego à conclusão, claro, de que ela não existe. Eu acredito que o motivo de o homem tê-la inventado está associado principalmente ao fato de o mesmo – diante da plenitude do verbo “Morrer”, ao atingir um ente querido – tentar suavizar e se livrar do pior de seus sofrimentos, a dor causada pela perda de alguém. É a “Morte”, portanto, para mim, a melhor e maior espécie de eufemismo já idealizada pelo homem. Fora através dessa eufêmica atitude que o ser humano pôde dar continuidade à vida daquele ente que morrera, e acalmar, assim, os sentimentos daqueles que ficaram em vida. Muito embora eu pense que, se acaso essa bendita Morte de fato existir, eu espero e oxalá que ela seja algo semelhante ao ato de, ora dormir, ora estar acordado.

Corpo Sou

Fixo-me ao devir de minha mente

cujos pensamentos levam-me ao suplício “abstracional”

que, ao passar por um processo de materialização,

proporciona impressões encafifas ao meu corpo

 

Este, todo desconchavado,

devido a esse fenômeno inusitado,

goza de várias experiências peculiares

 

É como se algo percorresse o interior de seus membros,

indo em direção à parte central de seu tronco

E, instalando-se ali, aumenta mais ainda essa suposta angústia,

fazendo dessa corporação uma serva

 

Eu, tentando me desvencilhar dessa associação,

fujo novamente aos abstraimentos

Doravante, percebo que sou justamente este corpo

Melhor, que sou justamente corpo

 

De tal modo, tomado por essa antipredicatividade,

para me desprender de uma vez por todas desse carregado pronome,

que insiste em me substituir e,

mui demasiadamente, me desconstruir,

assevero e corroboro, de agora em diante,

que Corpo Sou